A Indústria AAA em Modo Lucro: Xbox como Síntese, Setor como Cenário
A internet adora um bom drama. E quando a Bloomberg soltou aquela história sobre a Microsoft supostamente exigindo 30% de margem de lucro no Xbox, a narrativa apocalíptica estava pronta: "Os abutres! Só querem dinheiro! RIP jogos inovadores!"
Mas será que é isso mesmo? Ou estamos fazendo tempestade em copo d'água? Vivemos em uma era onde cada rumor vira manchete, cada decisão corporativa vira teoria da conspiração, e cada fechamento de estúdio vira o prenúncio do fim dos videogames como conhecemos. É compreensível afinal, somos apaixonados por esse meio. Mas será que não estamos deixando o pânico obscurecer a análise racional?
O Tal Decreto dos 30% — Que Talvez Nem Exista
Vamos começar pelo óbvio: não há provas concretas dessa meta
de 30%. Nenhum documento vazado, nenhum e-mail, nada. A própria Microsoft
respondeu dizendo que "nem todos os projetos precisam atingir essa
margem".
Pode ser uma diretriz interna ambiciosa. Pode ser um
objetivo de longo prazo. Pode até ser uma meta mal interpretada ou aplicada
apenas a determinados tipos de projeto. Mas transformar isso em "Microsoft
mata os jogos" é um salto bem grande e potencialmente injusto.
A Capcom, por exemplo, opera com margens próximas a isso e
continua fazendo jogos excelentes como Resident Evil, Monster Hunter e Street
Fighter. A FromSoftware também mantém margens saudáveis enquanto revoluciona o
gênero de ação-RPG. Margem de lucro saudável não é sinônimo de mediocridade pode
ser, na verdade, o que permite investir em novos projetos, contratar mais
talentos, e garantir a segurança financeira dos times de desenvolvimento.
Empresas que operam no prejuízo eventualmente são forçadas a cortar drasticamente. Empresas lucrativas podem investir no futuro. É uma equação básica, mas que parece ser esquecida quando o assunto é "grandes corporações malvadas".
O Que a Microsoft Está Realmente Fazendo
Aqui está o que frequentemente se perde no discurso
apocalíptico:
Projetos menores continuam acontecendo. Keeper,
recém-lançado, é um jogo menor e criativo que não precisava existir se a
Microsoft estivesse realmente focada apenas em apenas lucros. Pentiment foi um
sucesso de crítica, um RPG narrativo de baixo orçamento que dificilmente teria
espaço em outras publishers. Grounded também começou pequeno e cresceu organicamente. A Microsoft
não parou de investir em projetos experimentais na verdade, parece ter
aumentado esse tipo de aposta nos últimos anos.
Game Pass traz terceiros no Day One. Stalker 2,
Persona, Ara: History Untold, Flintlock, Kunitsu-Gami a lista é enorme e
diversificada. O serviço continua oferecendo variedade e apostando em títulos
diversos, desde indies até jogos AA de médio porte. Isso requer investimento
significativo em parcerias e acordos que beneficiam desenvolvedoras menores que
ganham visibilidade e pagamento garantido.
Novos jogos em produção. Fable, Forza Horizon 6,
Gears of War: E-Day, a nova IP da Compulsion Games, Clockwork Revolution da
InXile... a pipeline está cheia por enquanto. E cheia de projetos
diferentes, de gêneros variados, com orçamentos distintos. Isso não parece uma
empresa que decidiu jogar tudo no lixo e fazer apenas sequências seguras.
Então, cadê exatamente o colapso criativo ou a obsessão lucrativa desenfreada que tanto se anuncia?
Os Fechamentos de Estúdios — Contexto Importa (Se Podemos Dar Um)
Sim, a Microsoft fechou estúdios como Arkane Austin e Tango
Gameworks (embora Tango tenha sido posteriormente adquirido pela Krafton, o que
sugere que havia interesse comercial no estúdio). Foi triste? Absolutamente.
Redfall foi um desastre e o fechamento da Arkane Austin representou a perda de
talentos valiosos. Mas isso significa que toda a divisão está em modo
"mata-tudo"?
Não necessariamente. Fechamentos pontuais acontecem por
várias razões: projetos que não deram certo comercial ou criticamente,
realinhamento estratégico após aquisições massivas, duplicação de funções após
aquisições gigantes como a da Bethesda e Activision Blizzard, ou simplesmente a
realidade de que nem todo projeto vinga mesmo nas melhores empresas.
A indústria inteira passou por reestruturações pós-pandemia.
Durante 2020-2022, houve contratação desenfreada porque o mercado de games
explodiu com as pessoas em casa. Agora, com a normalização, ajustes eram
inevitáveis. Sony fechou estúdios como PixelOpus e Japan Studio (parcialmente),
cancelou projetos como Factions multiplayer de The Last of Us. EA também cortou
projetos e equipes. Embracer foi ainda mais drástica, fechando ou vendendo
dezenas de estúdios após uma expansão insustentável. Isso não é exclusividade
da Microsoft é um ajuste global após o boom artificial de 2020-2022.
Contextualizar não significa justificar ou celebrar fechamentos. Significa entender que a indústria opera em ciclos e que nem toda decisão difícil representa uma mudança filosófica permanente.
E as Outras Empresas?
É verdade que várias gigantes estão cortando custos e
focando em franquias estabelecidas. Mas é importante não generalizar demais ou
pintar tudo com a mesma brocha:
Sony reduziu o ritmo de single-player e aumentou foco
em live services, mas God of War, Spider-Man, Horizon, The Last of Us e Ghost
of Tsushima continuam aparentemente sob perspectiva de novos lançamentos. Eles
não acabaram com tudo ajustaram o volume, prometendo pelo menos um AAA
single-player por ano, enquanto buscam a lucratividade em live services como
Helldivers 2 (que foi um sucesso massivo incluindo no Xbox). É uma mudança de estratégia, não um
abandono.
EA cancelou projetos como Titanfall e outros títulos
não anunciados, sim, mas também continua com Star Wars Jedi (com possível
terceiro jogo) e investiu pesado em EA
Originals (programa para jogos indie que trouxe It Takes Two, A Way Out, e
outros). Eles também mantêm investimento em esportes, que são lucrativos e
bancam outros projetos.
Ubisoft está em crise financeira real e precisou
cortar projetos e adiar lançamentos como Assassin's Creed Shadows. Mas ainda
está tentando inovar dentro de suas franquias veja o Mirage, que voltou às
raízes do Assassin's Creed, ou o investimento contínuo em Avatar: Frontiers of
Pandora. A crise deles é mais sobre má administração e jogos subestimados do
que sobre uma filosofia anti-criativa.
Isso é uma indústria se ajustando após crescimento insustentável, não se autodestruindo. Ou talvez esteja? O tempo dirá mas parece prematuro decretar o fim de tudo agora.
Então Por Que Todo Esse Pânico?
Acho que há alguns fatores psicológicos e midiáticos em
jogo:
Medo é viral. Notícias negativas geram mais cliques,
mais engajamento, mais compartilhamentos. "Microsoft pode estar pensando
em melhorar margens de lucro em alguns projetos" não dá manchete.
"Microsoft decreta o fim da criatividade e mata todos os jogos
autorais" dá. É sensacionalismo puro, mas funciona porque toca em nossos
medos mais profundos sobre a corporativização dos videogames.
Viés de confirmação. Se você já acha que grandes
empresas são ruins e que "antigamente era melhor", toda notícia vira
prova disso. Um estúdio fechado? "Eu avisei! Capitalismo selvagem!"
Dez estúdios continuam trabalhando em projetos diversos? "Mas por quanto
tempo? Logo vão fechar também!" É impossível vencer esse argumento porque
ele não se baseia em evidências, mas em crença pré-estabelecida.
Confundir negócio com arte. Videogames são arte, sim.
Mas também são produtos comerciais feitos por empresas que precisam pagar
salários, benefícios, aluguel, equipamentos. Empresas precisam ser
sustentáveis. Isso não é maldade, não é ganância desmedida é realidade. Lucro
permite investimento em novos projetos. Prejuízo leva a cortes, demissões e
fechamentos. É simples assim. Podemos debater quanto lucro é "justo",
mas demonizar a própria ideia de lucratividade é ingênuo.
Nostalgia distorcida. A crença de que "antes era melhor" ignora que a indústria sempre foi assim. Nos anos 90 e 2000, estúdios fechavam o tempo todo. THQ faliu. Midway desapareceu. Acclaim fechou. Atari quase destruiu a indústria inteira em 1983. A diferença é que hoje temos acesso instantâneo a cada decisão corporativa, cada rumor, cada demissão e isso amplifica a percepção de crise.
A Perspectiva Que Falta
Vou ser sincero: devemos fazer o debate, sim. Questionar
decisões corporativas é saudável. Mas não sei se devemos fazer alarde baseado
em especulação e rumores não confirmados.
Fechamentos pontuais não significam padrão irreversível. Uma
meta interna de margem de lucro (que talvez nem seja real, ou talvez seja
aplicada apenas a certos tipos de projeto) não é lei absoluta que dita cada
decisão criativa. E convenhamos: se a própria empresa diz publicamente
"nem todos os projetos precisam seguir essa lógica", transformar isso
em verdade universal que condena toda criatividade é forçar a barra ou, no
mínimo, fazer julgamento sem ter todos os fatos.
A Microsoft está com uma lineup robusta e diversificada. Tem
jogos pequenos e experimentais como Pentiment e Grounded. Tem AAAs tradicionais
como Forza e Gears. Tem live services como Sea of Thieves. Tem RPGs imensos
como Starfield e Avowed. Tem variedade genuína. O Game Pass traz terceiros
constantemente, dando visibilidade a jogos que, de outra forma, passariam
despercebidos para muitos jogadores.
Isso parece uma empresa que matou a criatividade? Ou uma empresa obcecada apenas por lucro a qualquer custo? Ou parece, na verdade, uma empresa tentando equilibrar experimentação com sustentabilidade financeira?
O Verdadeiro Risco (Se Houver Um)
Se existe um risco real e pode existir, não é o que as
manchetes sensacionalistas estão dizendo. Não é "Microsoft virou máquina
de lucro sem alma". É mais sutil e, talvez por isso, mais preocupante:
O risco é a homogeneização gradual. Se todas as
empresas focarem apenas em franquias seguras e comprovadas, a diversidade de
experiências diminui lentamente. Mas ainda não chegamos lá, ainda vemos muita
variedade no mercado, tanto de grandes publishers quanto de indies e AAs.
O risco é perder a experimentação de médio porte.
Jogos como Control, Alan Wake 2, Hellblade, ou A Plague Tale projetos que não
são indie nem blockbuster bilionário, mas ocupam um espaço importante de
inovação com recursos razoáveis podem ficar sem espaço se tudo virar
"pequeno e barato" ou "gigante e seguro". Esse meio-termo
criativo é vital. Mas mesmo isso, por enquanto, é especulação. Alan Wake 2 foi
feito. Hellblade 2 está saindo. Plague Tale teve sequência. O espaço ainda
existe.
O risco é a pressão constante por monetização. Battle
passes, microtransações, live services, quando isso vira obrigação em vez de
escolha criativa, os jogos sofrem. Mas, novamente, nem todo jogo da Microsoft
(ou Sony, ou qualquer outra) tem isso.
Conclusão: Calma, pessoal
A indústria está mudando? Sim, sempre esteve. Está ficando
mais consciente de custos após o boom insustentável da pandemia? Também. Mas
isso não é automaticamente o apocalipse dos videogames autorais e criativos.
Temos jogos criativos sendo lançados pelo Xbox
constantemente, com a divisão sendo praticamente um centro de experimentação
com mais IPs novas a cada ano. Temos variedade no mercado, com Game Pass
recebendo inúmeros jogos de terceiros isso requer investimento massivo e
contínuo, e aparentemente está crescendo, não diminuindo. Temos desenvolvedoras
pequenas e médias prosperando, seja através de publishers como Devolver,
Annapurna e Raw Fury, seja de outras independentes. E temos gigantes ainda investindo
em projetos diversos, com o próprio Xbox reservando um 2026 que promete ser
icônico e contrastante com o pessimismo das notícias atuais, mas tudo isso,
sim, com mais cuidado com gastos e sustentabilidade.
Fazer alarde sobre uma suposta meta de margem (que pode nem
ser real, ou pode ser mal interpretada, ou pode ser aplicada apenas a certos
projetos) e alguns fechamentos pontuais de estúdios (tristes, mas não únicos da
Microsoft) parece prematuro e, francamente, um pouco histérico. Se daqui a dois
anos a Microsoft só lançar Halo, Gears e Forza com zero variedade, zero
experimentação, zero projetos menores aí sim podemos falar em crise criativa
consolidada.
Por enquanto? Acho que podemos respirar fundo, acompanhar o
que realmente acontece nos próximos lançamentos, e esperar para ver se os medos
se confirmam ou se eram apenas tempestade em copo d'água. Julgar com base em
evidências concretas, não em rumores e especulações, parece o mínimo de
sensatez que devemos ter.
Porque drama dá cliques, gera engajamento, alimenta
discussões acaloradas nas redes sociais. Mas nem sempre na verdade, raramente reflete a realidade complexa e nuanceada de como uma indústria bilionária
realmente opera.

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